2004-02-11

Vasco Graça Moura

Nem sempre estou de acordo com ele, direi mesmo, raramente me identifico com o seu discurso mas tenho de reconhecer que a crónica de Vasco Graça Moura, publicada hoje no Diário de Notícias é uma pérola preciosa que deve ser guardada.
Aqui fica o link mas como os links se tendem a perder com o tempo, deixo aqui também a transcrição, além disso vai permitir aos mais preguiçosos que não tiveram pachorra para a ler na fonte, saborea-la imediatamente:

Kolmi

1. Entom chegaram uns moços folgando mui joviais e arremetendo por antre as cavalgaduras. E encontrando seu Mestre lhe disseram rijamente: - Bofé, dom vilão, que nom queremos nós nem trívio nem quadrívio, ca filharemos outro mester lavrando pedra em Castela. E o Mestre, mui calado e mui torvo, se foi asinha.

2. Entra Domingas e diz: Eramá, esses bastardos / nada querem da labuta. / Muita parra, pouca fruta, / pouca ervilha e muitos cardos. / Triste vida fideputa! / Antes irei de bom grado / ver se acaso estou doente: / sempre o físico consente / em me passar atestado / e então folga toda a gente. / Ó filhos de Belzebú, / acaso perdeis o siso? / Aos livros limpai o cu, / ou metei-os no baú, / que os lerdes não é preciso (vai-se bailando).

3. Aquela pastora mui merencoriamente assentada olhava o rouxinol que se ia morrendo. E a senhora Arima lhe falou, por conhecer, de tantas mágoas que ali tão longe a tinham trazido, qual fosse então a causa. Ao que ela em seu fundo suspirar, gemia que um zagal a pusera em tão triste estado, por porfiar ele mais em dar-lhe os ensinamentos que soía quando ela menos os desejava.

4. Não mais, Musa, não mais, que o meu engenho / a moucos vem falar, empedernidos. / Nem querem já saber porque aqui venho, / nem de meu estro são agradecidos. / Ó caso singular, ó caso estranho, / ó ruído mais torpe entre os ruídos! Em vez de honesto estudo próprio de aula, / mais se diriam feras numa jaula!

5. Pegavam os santos do Império Romano num pergaminho sagrado, desatavam as fitas, desenrolavam a pele, assopravam o pó, alisavam as dobras, decifravam a letra, abriam o coração e recitavam aqueles cânticos inefáveis. E vós hoje vedes um cartapácio, e não quereis sopesar-lhe o cabedal, afagar-lhe a lombada, abrir suas folhas, ler nele escorreitamente alguma lição impressa e preparar assim o Império que há-de vir!

6. O almocreve desbarretou-se e coçou a cabeça devagar: "- Ora, meu fidalgo, eu cá nesta vida só aprendi três coisas: assinar de cruz, pensar as mulas e não falhar com esta clavina. Não preciso de mais". E assentou pesadamente a coronha do bacamarte na soleira da venda. "- Veja o fidalgo o senhor Morgado de Agra de Freimas: tanto leu, tanto leu, que tresleu e deu em léria, com perdão de V. Exa."

7. Nas nossas aulas, ao amanhecer, / evita-se a leitura, o baço tédio, / pois a escola encontrou outro remédio / e eu deixo o meu cigarro esmorecer. / Austera escola! Aplica o seu afã / e ensina entre chilreios aos rebentos / os úteis, impecáveis rudimentos / para engraxarem botas amanhã.

8. Com um sacudir impaciente da botina de verniz, Cecília arredou aquela resma de papel sorumbático. Que estavam ali a fazer a gramaticazinha esbeiçada, o caderninho de significados com nódoas de tinta, a selectazinha encardida de vetustos autores? Pela janela aberta de par em par, a brisa do Tejo entrava, luminosamente, maciamente azul, numa doce lufada matinal. E Roberto estava a chegar.

9. Karaças, meu! Par-tu-tos kornos se olhas pràs koxas da Çónia Çoraia. Topas? A gaja é kinda não topou, mas logo apalpu-lhe as tetas nem ke seja ko telemóvel. Ontem a setôra xamou os meus pais, mas eles absteram-se de ká vir, meu, e ela kaga-se toda só de pençar ke lhe póço ir às fussas. Kolmi.

À consideração superior: do presente documento, vê-se que só à nona tentativa é que foi possível encontrar-se uma linguagem adequada às capacidades e necessidades comunicacionais dos aprendentes. Propõe-se pois que os programas de língua portuguesa sejam elaborados em conformidade.

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