2009-04-29

Bom-nome na praça

Naquele tempo, o bom-nome na praça era uma virtude a prosseguir a todo o custo.
Qualquer comerciante, artesão, industrial, agente económico, tinha que conseguir ter bom-nome na praça ou a sua vida económica enveredava por caminhos ínvios de grande dificuldade e, mesmo assim só se mantivesse o bom-nome, não na praça, mas nesses caminhos ínvios.
Por terem perdido o bom-nome na praça, muitos agentes económicos preferiram acabar com a sua própria vida a assumir a sua desonra. Era uma questão de honra.
Naquele tempo, o bom-nome na praça era conseguido com uma vida de esforço e de coerência.
É claro que o nome de família ajudava ou complicava, filho de peixe sabe, ou deve saber nadar, o bom-nome tinha que ser cultivado mas podia também ser conquistado, contra as correntes hereditárias, era um esforço de uma vida.
Naquele tempo, vivia-se em circuitos curtos, a praça era um local.
Hoje, com a sociedade global o bom-nome é independente da vida. Como é que um desconhecido tem ou adquire bom-nome?
Como em tudo na modernidade vem de uma abstracção progressiva, procura-se o Deus-justiça, o Deus-media para atestar o que a nossa vida não produz, prejudicam-se ou eliminam-se os que vêm mácula em nós. Velamos pelo nosso bom-nome eliminando as críticas e os dissidentes.
O esforço já não é interior, é exterior. Reconheçam o meu bom-nome que eu continuo na mesma.
È daqui que nasce a febre persecutória de, por exemplo, o Sr. Engenheiro Sócrates.
Como sempre agora a solução é: eu não mudo, mude o mundo por mim.
Aparentemente é uma via mais difícil mas praticamente não é, basta chegar a quem fala mais alto.
É também por isso que vemos hoje apoucar o bom–nome dessa figura notável, da nossa história, a quem tanto devemos, que foi D. Nuno Álvares Pereira agora S. Nuno de Santa Maria.

2009-04-27

A guerra

Se há um aspecto que eu admire nesta civilização global é a eficácia demonstrada nesta guerra entre a humanidade e os vírus.
Desde a gripe asiática que vivi na minha infância, nunca mais o inimigo conseguiu uma operação de tal envergadura.
Ainda tentou com a gripe aviaria mas a humanidade reagiu como uma orquestra, até na minha rua houve operações de defesa.
Agora, o vírus aparece mais hábil com esta gripe suína.
Mas contra a enorme versatilidade e adaptabilidade do inimigo a humanidade já se mobilizou concertadamente, com máscaras, com tamiflu, com intensa investigação em milhares de laboratórios, com controlo aduaneiro, com a eficácia possível que, se não contiver o invasor, pelo menos lhe tirará muita força.
É pena que a mesma clarividência não seja utilizada no que pareceria mais simples:
Conter os inimigos internos. Vivermos melhor.

2009-04-25

25 de Abril

Na aproximação desta data os media têm, mais do que noutros anos, procurado estimular a reflexão sobre o significado desse dia de 1974.
Promoveram fora, debates, depoimentos e várias efemérides sobre o assunto.
Tudo isso fez-me pensar sobre o que significará, para mim, o 25 de Abril.
Uma coisa apenas me parece indiscutível: a liberdade.
É incomparavelmente maior agora e não é, de todo, uma questão de somenos importância, só por si justifica a revolução.
Mas algo me parece que se perdeu também, talvez algum bom-senso!

2009-04-17

O que é que Alberto Martins tem a ver com o homem do leme

Foi há 40 anos que Alberto Martins, como Presidente da Associação Académica de Coimbra, se ergueu do lugar passivo que lhe cabia numa visita do Estado fascista à Universidade de Coimbra e pediu a palavra, em nome dos estudantes que representava, ao Presidente da República Américo Tomás.
Um acto simples, insignificante, dirão agora os leitores mais jovens, mas não foi, foi um acto de enorme coragem em que Alberto Martins jogou para o ar todo o seu futuro, tendo consciência plena de que o fazia.
Naquele tempo era impensável.
Tentei encontrar um equivalente que pudesse ocorrer hoje mas não encontro, só quem viveu esse tempo sabe o que estou a dizer.
A palavra não foi dada a Alberto Martins, nem na sala se gerou mais nada para além da ruidosa reacção de solidariedade dos estudantes, feita sob a cobertura do anonimato e da multidão mas Alberto Martins ficou marcado ali e, nessa mesma noite, era preso e o seu futuro ficou condicionado.

Eu admiro mais estes actos de coragem serena do que muitos outros mais espectaculares e violentos e creio que é disto mesmo que fala Fernando Pessoa no seu famosíssimo poema “O Mostrengo”, é a coragem serena do homem do leme, tremendo de medo, consciente da sua debilidade mas que persiste cumprindo o seu dever, que mais nos emociona nesse poema.

Mas Fernando Pessoa fala melhor do que eu:

Mostrengo

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou trez vezes,
Voou trez vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou trez vezes,
Trez vezes rodou immundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-rei D. João Segundo!»

Trez vezes do leme as mãos ergueu,
Trez vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer trez vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quere o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
D' El-rei D. João Segundo!»


Naquele dia de há 40 anos, quando Alberto Martins se levantou da cadeira, estou certo de que tremia também, tal como a sua voz traía.

2009-04-16

O regresso a casa

Já instalado e de regresso às velhas rotinas, recordo o único episódio notável dessa sequência de aviões e aeroportos.
Feito o “check in” em Pristina, enquanto aguardava calmamente o momento do embarque para Viena, ouço no altifalante qualquer coisa imperceptível que se referia ao passageiro, para Viena Mr. Iordao Nuno.
Era eu! Devia ser eu mas porquê?
Fui indagar junto de um funcionário da alfândega, que depois de ele próprio indagar, me veio esclarecer que a minha mala de porão teria que ser inspeccionada.
Que raios, é roupa suja, essencialmente, uns DVD pirata (mas isso só deveria preocupar a alfândega de Lisboa) e umas lembranças como um pequeno alaúde típico Albanês, cujo nome não sei, e um chapéu, também típico da Turquia e da Albânia e do Kosovo que muitos velhos trazem na cabeça e cujo o nome também não sei dizer.
Que suspeita teriam os homens?
Aguardei calmamente até que vejo chegar um funcionário com a minha mala que me pediu para o acompanhar a uma cabine.
Enquanto eu abria a mala o funcionário foi-me questionando: “O Sr. traz isqueiros?”.
Trazia, de facto trazia 25 isqueiros, tipo BIC, para dar aos amigos em Portugal.
Estes isqueiros que se vendem no Kosovo, além de bons, têm uma pequena lanterna, por vezes utilíssima e, o melhor de tudo, é que custam 20 cêntimos, cada um. Eu tinha comprado 5 Euros deles.
Roubaram-mos todos, disseram que era muito perigoso por causa do gás.
Tretas, só naquele avião deveriam seguir mais de 150 isqueiros em bolsos diversos.
Por fim, comiserados deram-me 5, dizendo: “pode levar estes”.
E assim foi.
Os meus amigos é que ficaram a “arder”, curiosamente por falta de isqueiros.

2009-04-13

Carta de Pristina – 9

Muito provavelmente também a última.
Pois é, regresso amanhã com o dever cumprido.
Como apreciação geral diria que foi assim como uma viagem ao passado, ver coisas que já vi mas que já não via à muito tempo.
Surpreendente mesmo, é a paz e o sossego que se vive neste que tem sido um palco de guerra.
O crime é raro e quase sempre não violento, o que há as vezes, ouve-se dizer, são furtos em residências.
O trânsito é caótico mas não assisti a uma única batida de carros, os acidentes são pouquíssimos.
E para mais parece que as cartas de condução são na esmagadora maioria administrativas. Como em tempo de guerra o pessoal foi aprendendo a guiar sozinho, como pôde, com a independência foram dadas licenças de condução a quem solicitou, para introduzir a legalidade, talvez por isso não há bem a noção de prioridade, é quem está mais a jeito é que passa primeiro, venha de onde vier ou mesmo a entrar numa rotunda.
Toda a gente espera tudo, talvez por isso não haja tantos acidentes.
Outro dia vi uma cena que horrorizaria alguém de um país mais “civilizado”: Três miúdos de uns 7 ou 8 anos brincavam na terra e um deles com uma enorme enxada com que cavava a terra, estavam felizes como as crianças a brincar costumam estar.
Tantas crianças que há, andam no carro aos pulos no banco de trás ou da frente.
Todavia, Pristina é uma Lisboa dos anos 50 e 60, mas com internet e TV do século XXI e com Euro sem se preocupar com o défice nem coisa nenhuma.
Creio que tudo vai mudar e mudar rápido, é para isso que a UE, sobretudo, está a investir muito. Foi para isso, aliás, que eu vim cá dar o meu minúsculo contributo.
Essa é que é essa, também vim cá modernizar o Kosovo ou, como dizia um velho Professor de Reading: “ajudar os ricos a ficarem mais ricos e os pobres a ficarem mais pobres!”

2009-04-09

Carta de Pristina –8

Hoje, talvez este título não esteja verdadeiramente apropriado, não foi em Pristina que passei o dia mas numa pequena aldeia rural, na área de Gilane, cujo o nome não retive com rigor.
Sendo um dia feriado no kosovo, dia da constituição, fui convidado para um almoço numa família rural.
Digo família mas deveria talvez dizer tribo ou grande família, de facto são unidades complexas de tios e primos, que vivem em casas individuais, por família, mas próximas uma das outras e onde há uma grande interacção e exploração agrícola, se não em comum, muito articulada.
O almoço foi numa casa de um deles, não na de quem me convidou, mas estavam todos os homens.
Como é preceito por ali, deixamos os sapatos à porta e entramos em meias, sobre tapetes e alcatifas que vêm já de fora. Felizmente tinha as meias apresentáveis.
A sala era simples, com um banco estufado ao longo de duas paredes à maneira árabe, para se comer recostado, embora hoje fossemos tantos que nem deu para todos nos sentarmos aí, alguns ficaram em almofadas no chão, o dono da casa, por exemplo.
A tradição árabe ou muçulmana impõe que seja um ou mais rapazes jovens que fazem todo os serviço, comandados no interior da sala pelos mais idosos com simples olhares e sinais e no exterior certamente pelas mulheres que permanecem escondidas para nós mas comandando tudo por trás dos bastidores.
Foi assim ali mas como os tempos estão mudando, também apareceu no fim uma jovem a ajudar.
Abriu com um aperitivo, não alcoólico, naturalmente, mas composto de um sumo de qualquer coisa e depois um café turco com um doce que serve para adoçar o café e comer-se impregnado do dito. Era bastante bom.
Depois levantámo-nos para lavar as mãos, e regressámos ao lugar onde já estava uma toalha sobre a mesa.
O almoço, comido à mão, como é costume, consistiu em flija (uma espécie de crepe ou empadão folhado, em folhas grossas, entremeando um recheio que me pareceu de carne).
A acompanhar um queijo tipo atabafado, e um prato de, o que me pareceu kefir ou quando muito um iogurte pouco doce e esse sim, era comido com colher.
Estava bom, bastante melhor do que piza, como tive a oportunidade de dizer.
A terminar outro café turco e, a prolongar-se pela tarde, alimentando a conversa, chá.
São momentos destes, que por vezes a minha área de actividade proporciona, que eu valorizo muito, não há dinheiro que compre uma oportunidade como esta, vedada aos turistas, ou se feita para estes, sem a mesma naturalidade e pureza.

2009-04-07

Carta de Pristina – 7

Curiosidades

Se o Kosovo fosse uma província portuguesa, chamar-se-ia provavelmente “Melraria”.
De facto o seu nome deriva de Kos, que significa melro em varias línguas eslavas como, por exemplo, no polaco, seguido do sufixo (ovo, owo, owa, owe) também muito eslavo que transmite uma noção de conjunto ou de atributo dominante.
Todavia o que eu vejo aqui como fortemente dominante não são os melros mas sim esse tipo mais pequeno de corvo que são as gralhas. Estão por todo o lado, parecem uma praga.
Para um leigo, todavia, uma gralha e um melro, sendo de géneros completamente diferentes, tem alguma semelhança fenologica, sao ambos negros e de estatura semelhante, seja como for, o nome da terra é “terra dos melros”.
Por outro lado, aqui, em albanes, amarelo diz-se “verdhe” (com um tremazinho no e) e o que se ouve é: verde.
Imaginem o meu espanto quando comecei a ver num jogo de futebol uma intensa distribuição de “carte verdhe”, cartões verdes, par os meus ouvidos mas que afinal eram amarelos.

2009-04-05

Carta de Pristina – 6

Segundo fim de semana.

Durante a passada semana de actividade, cá em casa, a televisão apagou-se, foi-se embora tudo, inclusive a BBC world e a CNN que eram as minhas companhias diárias.
Refilei com o senhorio que me disse que era geral e precisava de uma peça.
Não sei, mas suspeito que ele teria uma tomada pirata, que terá sido neutralizada.
O meu amigo Bernard continuava na mesma em sua casa, com todos os canais.
Passados 3 dias a tv reapareceu mas apenas com canais locais que desde aí têm sido a minha companhia.
Não percebo nada do que dizem, excepto quando dão telenovelas brasileiras e mexicanas, que dão muito, para alem dos filmes americanos e outras séries em inglês.
Em tudo, felizmente, só colocam legendas.
Quanto aos outros programas já os vi todos ou parecidos, são as mesmas merdas do “Big Broader” albanês o “Ponto de Encontro”, “ A miss Kosovo” e o “Festival da Canção” tudo igual, tudo bem homogeneizado, tudo comandadas pelas mesmas multinacionais. Ah, e também futebol, é claro, montes de futebol e de Cristiano Ronaldo.
Quanto às notícias , agora só há uma, a entrada da Albânia na Nato, não imaginam a festa que houve em Tirana, que eu vi e revi na tv..
Não tenho dúvidas que para a Albânia, para os albaneses, o estar na Nato, não tem nada a ver com o Portugal, os portugueses, estarem na Nato mas mesmo assim achei graça a este entusiasmo por nada.
Também fui a Mitrovica, à famosa ponte que divide albaneses e sérvios.
São 2 mundos, duas moedas, até os sérvios usam aí o alfabeto cirílico para chatear, dado que eles normalmente usam o alfabeto latino como nós.
Teve uma compensação, permitiu-me comprar umas febras de porco.

2009-04-03

Carta de Pristina – 5

A parte essencial da minha missão terminou hoje, resta ver, reflectir e escrever.
O projecto de desenvolvimento rural em que estou envolvido, teve ontem uma vitória notável, juntar á mesma mesa sérvios e albaneses, procurando um futuro melhor.
E não é nada fácil, as sementes do ódio, não foram estripadas, as feridas abertas ainda gotejam sangue.
A realidade parece ser a que a Sérvia perdeu a guerra, de facto. Não se pode procurar razão ou justiça num território desde sempre partilhado por vários povos, durante séculos ocupado e explorado pelo Império Otomano de que restam ainda minorias de origem turca para aumentar a confusão, e a subdivisão de uma minoria sérvia islâmica, os Gorani.
Os Balcãs sempre foram um caldeirão, de gente que vivia em paz, cada qual no seu canto, até que a modernidade, as comunicações, a noção moderna de nação, o pôs a ferver, em lutas pela hegemonia, onde a Sérvia levou a melhor até perder.
A desagregação, que até gerou uma palavra, a balcanização, parece-me a única resposta lógica e viável para o problema, mas como não se pode chegar a um país para cada tribo, haverá sempre gente incomodada.
A estabilidade, a chegar, só quando as novas gerações se homogeneizarem e esquecerem o seu passado.

2009-04-01

Carta de Pristina – 4

Hoje foi uma primeira prova de fogo, enfrentar um auditório de kozovares.
Felizmente correu tudo bastante bem mas fui muito ajudado por um reforço inesperado, a simpatia que a generalidade dos kosovares parecem ter pela tropa portuguesa:
“Os portugueses são como nós” disseram-me, “simpáticos, prestáveis e teimosos que nem burros”.
Será?
Deixou muita saudade um tal Capitão Sousa. Só lamentavam porque já não eram portugueses os que estavam agora na zona deles.
Por mim procurei não envergonhar o Capitão Sousa e estar altura.
Parece que consegui.
A tropa aqui vive na sombra, raramente saem das casernas e assim não incomodam ninguém, vão fazendo umas compras e são, para alem disso, um seguro de vida para aquela gente traumatizada e assustada.
Por eles, a tropa podia e devia lá ficar toda a vida