2010-02-28

Como se cria um poema

Saíamos dum restaurante e aguardávamos debaixo do alpendre de uma vasta esplanada que os carros parassem à porta.
Chovia muito e alguns voluntários corajosos ofereceram-se para ir buscar os carros ao estacionamento.
Enquanto aguardávamos, Carolina explicava aos primos que a chuva eram as nuvens a chorar.
A notícia não causou nenhum espanto àquelas crianças, devia ser de facto, tinha toda a lógica apenas faltava o motivo, porque chorariam as nuvens?
Pedro saiu logo desse impasse, era óbvio, choravam porque não havia sol!
Eu, que assisti calado a esta discussão vi logo o poema que ali se desenhou:

Chuva

Chove, quando as nuvens choram
Pelo sol que não há.


Carolina Maria Jordão Martins, 6 anos, (minha sobrinha neta)
Pedro Jordão Freire, 5 anos, (meu neto)

2010-02-25

A arte de copiar

No pensamento único, como generalização homogeneizada do pensamento anglo-saxónico, o acto de copiar é encarado como praticamente um crime, um roubo, a obtenção desonesta de uma vantagem, à custa do esforço de um terceiro.
Até certo ponto, pode ser visto assim, de facto.
Todavia sem a cópia nunca haveria nenhum progresso na espécie humana:
As crianças, desde a mais tenra idade, aprendem precisamente copiando, imitando e a ciência só progride aos ombros uns dos outros, como dizia, salvo erro, Newton.
Nos meus tempos de jovem estudante copiar nos testes e exames era perseguido mas não moralmente reprovado.
Havia muita arte e engenho nas formas de copiar, de criar cábulas à prova de detecção e ao criá-las acabávamos por estudar um pouco, não sei se do mais importante mas, pelo menos, daquilo que pensávamos que iria sair e, como Deus é grande, geralmente saía.
Para os professores era também um estímulo e uma dificuldade, a missão ingrata de procurar detectar quem é que deveras sabia e quem é que trouxera o conhecimento consigo, no bolso das calças ou na aba do casaco.
E este processo vinha já de longe, lembro-me de o meu pai contar um episódio, certamente imaginado, da sua juventude onde perante duas provas exactamente iguais na justeza das respostas, o professor classificou uma delas altamente e anulou a outra.
Revoltado, o autor da prova anulada foi pedir explicações,
- Porque o senhor copiou tudo.
Justificou-se o professor.
- Copiei? Eu? Como é que o senhor sabe isso? Tanto quanto sei as provas estão quase iguais, quem lhe disse que não foi o meu colega que copiou por mim?
- É muito simples, na questão 3 o seu colega respondeu, “não sei” e na sua prova, na mesma questão, o que consta é “Também não”!
Passado anos fui eu próprio professor na Universidade de Évora e recordo-me do mal-estar que senti quando, em lugar da minha argúcia, foi um dos meus alunos que me denunciou um seu colega pelo crime de ter copiado.
A vontade que me deu foi a de louvar o infractor e punir o denunciante. Nos meus tempos de estudante, essa denúncia era impensável, só o mais reles e miserável dos alunos poderia ter o desplante de denunciar um colega.
Foi um dos momentos em que me apercebi como o mundo estava mudado.

2010-02-17

O traseiro do Governo

Há dias, num dos debates da TVI24, ouvi a um analista político, cujo nome, infelizmente, não retive, a explicação mais lúcida que alguma vez foi dita ou escrita sobre esta crise das escutas.
Citando Eça sobre a metáfora do manto diáfano da fantasia que cobre a nudez crua da verdade disse: o manto foi rasgado, agora todos podem ver o traseiro do governo.
É bem verdade, não há diferença entre Sócrates e todos os anteriores governos, neste domínio, o uso dos circuitos informais, do dito tráfego de influência, sempre foi uma medida utilizada por todos os governos para defenderem os seus pequenos e grandes interesses, só que tudo isto era feito debaixo do manto diáfano da fantasia que agora se rasgou.
As novas tecnologias de informação, as chamadas NTI, os telemóveis, os FAX, a Internet, tudo isso, é um mundo novíssimo que coloca problemas também novos.
Eu, no meu escasso tempo de vida, testemunhei essa mudança, lembro-me de assistir a acções de divulgação que nos falavam desse mundo novo da Internet mas que exigia ter um computador, caríssimo, que talvez algum dia pudesse vir a comprar e de ter, de serviço, um dos primitivos telemóveis, que exigiam uma enorme caixa na mala do carro mas que me permitiram, algures, no anos 80 do século passado, telefonar de uma zona perdida de França para a família e, imaginem, sem pagar um tostão. O próprio capital ainda não se tinha apropriado do meio, só a investigação funcionava e queria mostrar as suas conquistas.
Lentamente ou melhor rapidissimamente, tudo entrou no nosso quotidiano e tudo mudou.
Depois vimos já Aznar, em Espanha ser “distituído”, por manifestações convocadas por SMS, podemos saber das coisas mais recônditas, em blogs, nos twitter e nos face book. Vemos a China e outros países, apanhados de surpresa, a tentar lutar contra o google e a internet para que o seus cidadãos não espreitem debaixo do manto diáfano.
Meditei também sobre como e se Salazar conseguiria hoje manter o seu lápis azul da censura prévia, bastando para isso, ver este episódio Mário Crespo, que, à antiga, viu recusadad a publicação da sua crónica mas, à moderna, a publicou com mais alarido por outra via digital agora à sua disposição.
É verdadeiramente um mundo novo, os governos ainda não sabem viver nele.
Até que uma nova ordem se estabilize (se é que alguma vez vai estabilizar) nós passaremos sempre a ver o traseiro do governo, a ver o rei nu, como na história.
Sócrates e os outros todos que se aguentem.

2010-02-12

Citizen Kane

Hoje, enquanto almoçava, ouvia o som da televisão nas minhas costas, o som de vozes zangadas com esta suposta cabala do governo e de quem lhe está próximo para controlar os media.
São vários poderes em luta, a justiça, a política, a polícia os media, regidos por um único árbitro, o poder económico.
Veio-me à memória o excelente filme de Orson Wells “Citizen Kane”, para muitos o melhor filme alguma vez feito.
Como me lembro de cor (ou como o meu coração se lembra) em Citizen Kane todos se intrigavam com as últimas palavras, no leito de morte, do magnata da informação, Kane: “Rosebud”.
Que mistério encobriria? Que segredo tão zelosamente guardado e certamente tão valioso e potente?
Perto do final, Orson Wells mostra-nos a criança Kane, deslizando na neve de trenó, e mais tarde vê-se esse trenó ardendo.
A câmara aproxima-se e podemos ainda ler as letras nele gravadas: “ROSEBUD”.
Levantei-me da mesa e saí pensando que se alguém me pedisse, naquele momento, uma opinião sobre a crise das escutas, responderia apenas: “Rosebud”.
Infelizmente receio que ninguém me entendesse.

2010-02-08

O caso Sócrates

Ouvindo os fora de debate sobre este caso, que Sócrates apelidou de “Jornalismo de buraco de fechadura” a opinião dominante dos analistas profissionais, não tanto do público anónimo, é que Sócrates se deveria explicar.
Santa ingenuidade!
Explicar o quê? Que não tem nada a ver com o assunto e que é apenas imaginação delirante dos media e de alguma justiça que lhe quer ver máculas? Como tem dito sempre e ninguém ouve nem acredita.
Não, o que os analistas querem é que ele confesse que organizou uma cabala para controlar toda a comunicação social.
Está-se a ver que é o que ele vai fazer, não está? Com uma corda ao pescoço como Egas Moniz.