2009-04-17

O que é que Alberto Martins tem a ver com o homem do leme

Foi há 40 anos que Alberto Martins, como Presidente da Associação Académica de Coimbra, se ergueu do lugar passivo que lhe cabia numa visita do Estado fascista à Universidade de Coimbra e pediu a palavra, em nome dos estudantes que representava, ao Presidente da República Américo Tomás.
Um acto simples, insignificante, dirão agora os leitores mais jovens, mas não foi, foi um acto de enorme coragem em que Alberto Martins jogou para o ar todo o seu futuro, tendo consciência plena de que o fazia.
Naquele tempo era impensável.
Tentei encontrar um equivalente que pudesse ocorrer hoje mas não encontro, só quem viveu esse tempo sabe o que estou a dizer.
A palavra não foi dada a Alberto Martins, nem na sala se gerou mais nada para além da ruidosa reacção de solidariedade dos estudantes, feita sob a cobertura do anonimato e da multidão mas Alberto Martins ficou marcado ali e, nessa mesma noite, era preso e o seu futuro ficou condicionado.

Eu admiro mais estes actos de coragem serena do que muitos outros mais espectaculares e violentos e creio que é disto mesmo que fala Fernando Pessoa no seu famosíssimo poema “O Mostrengo”, é a coragem serena do homem do leme, tremendo de medo, consciente da sua debilidade mas que persiste cumprindo o seu dever, que mais nos emociona nesse poema.

Mas Fernando Pessoa fala melhor do que eu:

Mostrengo

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou trez vezes,
Voou trez vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou trez vezes,
Trez vezes rodou immundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-rei D. João Segundo!»

Trez vezes do leme as mãos ergueu,
Trez vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer trez vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quere o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
D' El-rei D. João Segundo!»


Naquele dia de há 40 anos, quando Alberto Martins se levantou da cadeira, estou certo de que tremia também, tal como a sua voz traía.

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