2009-10-10

Carta de Belgrado 17

Uma lição de vida

Hoje fui almoçar ao “Trag”. A minha mesa habitual, que já era minha por usucapião, estava ocupada por um sujeito mal encarado de óculos escuros.
Segui em frente, pela primeira vez, para a sala que ali via.
Pedja, já me tinha dito que a minha mesa não estava no melhor sítio mas todas as salas me pareciam iguais.
Ao entrar nessa segunda sala vi que à esquerda tinha umas escadinhas para o “paraíso”, ali ao lado.
Subi e entro numa mezanine, com um pequeno lago ao centro e recantos com mesas ao redor, algumas das mesas estavam ocupadas por jovens famílias sérvias, crianças entre os 5 e os 7 anos corriam como é habitual, nos restaurantes, fartas de tanta formalidade e procurando explorar esse pequeno mundo novo.
A minha atenção focou-se numa pequena criança muito activa e faladora que explorava, um buraco na parede que comunicava com a cozinha e estava feliz com a descoberta daquele segredo, felicidade que demonstrava em frases de espanto ditas em sérvio mas que eu compreendia perfeitamente (as crianças quando ainda não dominam a linguagem têm consigo o segredo da eloquência).
Olhando essa criança eu divaguei, simpatizei com a criança e o seu fascínio pelas coisas simples, vou chamar-lhe Artur como o rei que ele era. .
Depois surgiu uma outra criança, da mesma idade mas mais carrancuda e temerosa, andava a um metro de distância, doido por se aproximar, invejoso daquela felicidade.
A esta vou chamar-lhe Narciso, porque apenas se fascinava comsigo próprio e com o que era seu.
Narciso, por fim, descobre a solução, volta à mesa e traz um “transformer”, aqueles bonecos ridículo que se compram e mudam de forma toscamente.
A novidade cativou Artur, o outro tinha aquilo que ele via na tv, a princípio tentou desvalorizar, é um boneco de plástico, tá bem, mostra-me.
Narciso não mostrava, só queria exibir mas os seus dedos infantis não conseguiam transformar o “transformer” e Artur desinteressou-se.
Narciso correu para o pai, Deus pai, para transformar o “transformer”.
O pai que estava a leste de tudo, entra na peça nesse instante, pega no boneco e com mãos hábeis muda a sua forma rapidamente, mas aqueles momentos de atenção a um brinquedo de criança, estimulam a sua própria curiosidade, fazem-no querer ser perfeito ser um perito “transformer” fazer algo diferente e interessante.
Narciso fica ansioso, ele tem que exibir a sua glória já, o boneco transformado, arranca-o das mão do pai e corre para o exibir a Artur.
Mas Artur já estava noutra e Narciso desenvolve um bailado para chamar a atenção do outro. O “transformer” que agora era um carro, começa a ser passeado lentamente sobre o corrimão que rodeava o lago, enquanto Narciso querendo parecer displicente ia olhando ansiosamente para o outro tentando captar-lhe a atenção.
Artur não ligou nenhuma mas surge uma terceira criança que sim e que trás consigo um outro “transformer”.
A empatia estabelece-se, Narciso, de carrancudo e distante, pela primeira vez sorri
Os dois deambulam e falam dos seus bonecos e das suas habilidades.
É então que Artur repara, queria associar-se aos outros mas como? Eu não tenho “transformer”? Os outros fogem de Artur a cada tentativa de intromissão, até que Artur se retira envergonhado, escondendo-se por traz de uma coluna.
Estava à beira das lágrimas. Porque não tinha ele o seu “transformer”?
Da minha mesa compreendi o seu drama e tentei sorrir-lhe de simpatia mas correndo o risco de agravar o seu sofrimento se interpretasse o meu sorriso como de troça.
A minha refeição tinha chegado ao fim e saí pensando comigo:
Como eu gostava de falar sérvio para encorajar aquele miúdo.
Mas feliz mesmo ficaria se eu lhe fizesse um gesto de carinho e ele me respondesse com uma chapada, ao velho chato paternalista que não entrava na história.
O que, aliás, era muito provável que acontecesse.
Nunca saberei qual seria a sua reacção mas assim, sim, assim seria verdadeiramente o meu Rei Artur.

1 comentário:

Anónimo disse...

Bonito.
Saudades dos netos....