2009-02-25

A importância de um Hã

Ainda me doem as mãos de algumas palmatoadas que apanhei há cerca de 51 anos por ter questionado a minha professora primária, sobre algo que não tinha compreendido bem com um “hâ?”, em vez de uns civilizados “o quê?” ou “como?”.
Desta história retira-se que naquele tempo era legítimo aos professores primários aplicar castigos corporais aos seus alunos, bem longe deste tempo em que são mais os alunos a usar estes métodos com os professores.
Mas isto é irrelevante para o que pretendo dizer.
O que me magoou, até agora, nessas palmatoadas é que logo as avaliei como muito injustas.
O meu “hã” foi espontâneo, sem qualquer maldade e nos meus 8 anos eu ainda não dominava perfeitamente estes cambiantes da língua.
Mas ao ler o texto que se segue pude aperceber-me claramente como um “hã?” pode ferir como um punhal.
É um texto brilhante de Raul Brandão, um mestre da língua portuguesa, e que demonstra claramente como algumas poucas palavras podem dizer muito mais do que 1000 imagens:


“Tinha morrido na véspera. Nas últimas horas do dia nublado, ao sentir-se trespassada pelo frio, o da morte, chamara para junto de si a irmã, a Candidinha, uma mulher insignificante, envolta num xale gasto. Pelos vidros côa-se a luz baça do crepúsculo. Fora choram. A velha traça o xale, e a boca aumenta-lhe, avivam-se-lhe as rugas.
- A minha filha, peço-te… - diz-lhe a outra.
E entrega-lhe um maço de cartas.
A velha não responde. Um silêncio glacial. Na luz, que atravessa, antes de entrar no quarto, a espessura da água esverdeada, a Candidinha esboça um gesto de garra que se contrai. E a moribunda repete:
- Olha por ela… Tu sabes tudo.
A velha hesita; depois vai de súbito à porta e fecha-a de repelão. Transfigura-se: dum jacto sai daquela mulher amachucada e insignificante, uma figura de aço e ódio. Curva-se sobre a irmã e fala-lhe baixinho ao ouvido.
- Hã? …”

Raul Brandão in “A Farça”

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