Coimbra, 29 de Junho de 1990
Já não tem remédio. As minhas relações com os governantes hão-de ser sempre uma confrontação crispada. Mesmo quando uma real simpatia nos aproxima, o diálogo nunca é naturalmente cordial. Há nele, subjacente, não sei que mútua reticência. O mais vulgar cidadão e ocasional interlocutor mantêm-se nossos semelhantes para além da condição social. Mas o político, só pelo facto de o ser, é sempre um estranho ao pé de nós. Tem qualquer coisa de um predador humano, que ameaça dia e noite a paz dos demais viventes da selva. É pelo menos o que sinto. Quero abrir-lhes o coração, e não consigo. Não sei que instinto de conservação tolhe-me o impulso de sinceridade e acirra-me a vontade de o defrontar. Sei que só um objectivo o move na vida: o poder. Que por ele de tudo é capaz, diga o que disser, pareça o que pareça. Ora nesse desejo obstinado de mando, de domínio, vejo, não sei porquê, potencialmente comprometida a minha liberdade. E retraio-me. É como se o soubesse caladamente armado contra mim.
Miguel Torga, in “Diário XVI”
2007-08-12
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