2005-02-26

Kasparov vs mundo

Talvez alguns ainda se lembrem de ver algumas referências ao facto, talvez outros, como eu, tenham mesmo participado nesse memorável evento e recordem com saudade a emoção de participar num acontecimento que se revelou único.
Tudo começou em 1999, na sequência da primeira vitória de um “software” de computador (hoje oficialmente destruído) contra um dos mais brilhantes xadrezistas do nosso tempo, de seu nome Kasparov.
A MSN pensou lançar um novo evento espectacular, já não Kasparov contra “Deep Blue” mas antes Kasparov contra todo o mundo.
Processava-se assim: no “site” da “MSN gaming zone” Kasparov jogava com as brancas, de 2 em 2 dias, 4 muito jovens talentos do xadrez: (Etienne Bacrot, Florin Felecan, Irina Krush e Elizabeth Pahtz) analisavam as jogadas independentemente e propunham respostas para as pretas e, qualquer cidadão do mundo interessado e que se inscrevesse no encontro, votava por uma das quatro propostas.
Simultaneamente estavam disponibilizados dois “fora” (um geral e um técnico) onde tudo podia ser discutido e analisado em permanência.
Estava tudo preparado para um calmo passeio de Kasparov até uma vitória rápida.
O que não se esperava é que “o mundo” levasse tão a sério este encontro espectacular e fizesse, de novo, tremer Kasparov, como veio a acontecer.
O jogo começou em 21 de Junho de 1999 com uma saída habitual de Kasparov: e4 e a sequência prosseguiu pacífica e rotineiramente no desenvolvimento de uma normal defesa siciliana.
No esquema predefinido começaram a esboçar-se algumas tendências: Dos 4 jovens escolhidos para aquela simples e compensadora tarefa de propor uma jogada, um deles, Irina Krush, no momento com apenas 15 anos, começou a mostrar querer levar o jogo muito a sério.
As suas opções eram muito bem fundamentadas, recorria a si própria, aos seus mestres e à observação dos “fora” e das análise gerais do mundo, para propor as suas respostas.
No lance 10 tudo se complica. Irina propõe uma novidade: Qe6 em resposta a Nde2, o mundo lança-se furiosamente na análise da proposta, páginas e páginas de análise são publicados nos “fora” e finalmente a votação consagra a jogada de Irina, criando-se a agora denominada “variante mundo” ou “world variation” da siciliana.
Daí para a frente o jogo intensificou-se, as análises nos “fora” ganharam uma qualidade notável, a “escola russa” de xadrez, assumiu-se como fazendo parte da equipa do mundo e, segundo se dizia, o próprio Bobie Fisher estava a participar com um “nick name”. Se não foi verdade, foi pelo menos verosímil.
Irina Krush transformou-se no veículo das jogadas do mundo. Eram publicadas mensagens desesperadas para que Irina as incorporasse na sua análise. O jogo assumiu uma qualidade notável.
Modestamente eu, entre 60 000 que votavam e os talvez 500 que participavam mais activamente nos “fora” também vivi intensamente os dramas de cada jogada, passei horas a ler tudo a analisar cada lance a escrever também os meus pouco significantes palpites.
Não obstante ter-se tornado evidente que a luta era desigual, Kasparov tinha acesso a todo o pensamento do mundo e o mundo desconhecia o que ia na cabeça de Kasparov, a certo ponto, notou-se que a MSN começou a ficar um pouco nervosa, o sistema começou a apresentar falhas e a haver sinais de que os resultados apresentados das votações estavam viciados.
No lance 58, lance crucial, Irina perde misteriosamente contacto com o “server” da MSN e é impossibilitada de apresentar a sua proposta, o lance “seleccionado” pelo mundo foi desastroso e o jogo entra em descalabro até à vitória de Kasparov no lance 62 a 27 de Outubro de 1999.
As denúncias de viciação das regras foram imensas em todos os “media” especializados, a MSN desmentiu sempre.
Como participante respondi a 1 ou 2 inquéritos que me foram enviados de algumas Universidades que quiseram estudar o interessante fenómeno sociológico que esse encontro gerou.
Falou-se muito na desforra que seria organizada em breve mas, lentamente, tudo foi caindo no esquecimento.
Seis anos passados, fica aqui a notícia de que eu não me esqueci e continuo à espera da desforra.

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