2006-02-08

A perspectiva ontológica implícita no pensamento único

Ao ouvir, mais uma vez, na rádio que, já não sei que estudo científico demonstrava claramente que já não sei que substância das nossas relações matava seres humanos como tordos, como sempre, fez despontar em mim a eterna questão: “já sei que se ingerir aquela substância contribuo significativamente para a minha morte mas se não a ingerir, será que não morro ?”, “Não”, responderá o pensamento único “mas assim terás uma morte prematura”.
Faço as minhas contas: (não sei quando) menos n anos é igual a (não sei quando), “Fico na mesma, prematura em relação a quê ?”.
Seguindo por este raciocínio lembrei-me de uma história passada comigo há muitos anos:
Tinha então vinte e tal anos e foi a primeira vez que tentei patinar no gelo, nos EUA.
Com alguns camaradas decidimos ir experimentar a patinagem no gelo, o homem que alugava os patins, vendo-me com cara de estrangeiro de paragens mais quentes perguntou-me: “já alguma vez patinou no gelo ?”, “não” respondi-lhe “só sobre rodas”, “então não precisa pagar o aluguer, mantenha os joelhos unidos”. Esta oferta e este conselho, alertara-me para a responsabilidade do momento, as gargalhadas que iria certamente proporcionar com as minhas quedas desastradas valiam mais do que o aluguer dos patins, decidi então não me dar ao desfrute.
Concebi a seguinte estratégia, em vez de andar atarantado perto da balaustrada com a mão a uns centímetros desta, fazendo a figura típica de principiante, enquanto crianças de apenas 6 ou 7 anos deambulam elegantemente por toda a pista, dou um impulso e deslizo para o meio e aí, sou forçado a patinar mesmo.
E assim fiz, cheguei lenta e equilibradamente ao meio da pista e só então caí na realidade: “e agora Nuno ? o que é que fazes ?”, lá tentei dar uns paços tímidos e deslocar-me uns centímetros mas o risco de me estatelar era enorme, fiquei quieto pensando que pelo menos assim passava despercebido mas sem saber bem como haveria de sair dali.
Os acontecimentos seguintes castigaram a minha soberba: subitamente, um a um, todos os patinadores saíram da pista e entrou uma máquina gigantesca que fazia a limpeza do gelo e a sua conservação.
E assim ficou a máquina e eu, sozinho, no meio da pista, com todos os olhos virados para mim, sem me conseguir deslocar.
Por fim, este momento lamentável foi ultrapassado por um jovem patinador que entrou na pista, patinou até mim e agarrando-me nas mãos me rebocou para fora entre os aplausos e o gáudio geral. Só de uma coisa me gabo, de facto nunca caí !
A minha estratégia conduziu a situação ao pior resultado possível e percebi então que teria sido bem melhor ter saído pelos meus pés ainda que me estatelasse uma ou duas vezes.
Pensará agora o leitor mas o que é que esta estória tem a ver com “a perspectiva ontológica implícita no pensamento único” ?
Pois tem tudo a ver: assim como eu privilegiei manter-me em cima dos patins em vez de patinar e me dei mal, o pensamento único privilegia o mantermo-nos vivos em vez de vivermos, e penso que assim também nos daremos mal, os “prozac” e os "xanax" que o digam.
Há a ideia implícita nesse pensamento de que nós poderíamos viver eternamente, se conseguíssemos evitar todas as agressões que nos podem matar: germes, tabaco, sal, ausência de exercício, acidentes, virus, bactérias diversas e tudo o mais que se vai descobrindo.
O que a ciência nos diz, todavia, é que ainda assim morreríamos, porque a morte faz parte da vida e nem mesmo teria sentido falar em vida se não existisse a morte.
A existência tem sempre princípio meio e fim.
O importante será tentarmos viver alegre, útil e reflectidamente, enquanto isso nos for concedido.

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