2010-09-09

A propósito da política xenófoba de França

Para os Portugueses que estão integrados, como terão aprendido na escola, no mais antigo Estado da Europa, em condições históricas quase únicas para terem ainda algum sentido de pertença, podem não sentir este texto da mesma forma que os franceses, embora este seja um texto muito lúcido e que toca exactamente no âmago da questão.

O rebentar de uma explosão de riso seria a resposta adequada a todas as graves «questões» que a actualidade tanto gosta de levantar. A começar pela mais repisada de todas: a «questão da imigração», que não existe. Quem é que ainda cresce no mesmo sítio onde nasceu? Quem é que vive no mesmo sítio onde cresceu? Quem é que trabalha no mesmo sítio onde vive? Quem é que vive no mesmo sítio onde os seus antepassados viveram? E as crianças desta época são filhas de quem, da televisão ou dos pais? A verdade é que fomos, em massa, arrancados a toda e qualquer pertença, já não somos de lado nenhum, e que daí resulta, a par de uma inédita propensão para o turismo, um inegável sofrimento. A nossa história é a das colonizações, das migrações, das guerras, dos exílios, da destruição de qualquer enraizamento. Foi a história de tudo isso que fez de nós estrangeiros neste mundo, convidados na nossa própria família. Fomos expropriados da nossa língua pelo ensino, das nossas canções pelos espectáculos de variedades, da nossa carne pela pornografia de massa, da nossa cidade pela polícia, dos nossos amigos pelo trabalho assalariado. A isto junta-se, em França, o trabalho feroz e secular de individualização levado a cabo por um poder de Estado que regista, compara, disciplina e separa os seus cidadãos desde a mais tenra idade, que tritura instintivamente as solidariedades que lhe escapam, de modo a que não reste nada senão a cidadania, a pura pertença — fantasmática — à República. O francês, mais do que qualquer outra coisa, é o espoliado, o miserável. O ódio que tem ao estrangeiro funde-se com o ódio a si próprio enquanto estrangeiro. O misto de inveja e terror que sente em relação às «cités» revela apenas o seu ressentimento por tudo o que perdeu. Não consegue evitar invejar esses bairros ditos «problemáticos» onde ainda persiste um pouco de vida comum, alguns laços entre as pessoas, algumas solidariedades não-estatais, uma economia informal, uma organização que ainda não se separou daqueles que se organizam. Chegámos a um ponto tal de privação que a única maneira de nos sentirmos franceses é barafustarmos contra os imigrantes, contra aqueles que são mais visivelmente estrangeiros como eu. Os imigrantes ocupam neste país uma curiosa posição de soberania: se eles cá não estivessem, os franceses talvez já não existissem.


L`insurrection que vienne – Comité Invisible

Livro, excelente, publicado em França em 2007, foi agora traduzido e editado em português pelas “Edições Antipáticas”.
O texto global pode e deve ser descarregado em PDF
aqui, site onde pode ainda descarregar outras pérolas filosófico-literárias.

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