2008-09-14

Sobre o conceito de valor 2


Na minha busca incessante pelo conceito de valor, estou a ler o livro de Brillac Savarin “A fisiologia do gosto”.
Savarin é um nome mítico na comunidade gastronómica, não obstante ter publicado este livro em 1826, há quem veja nele um percursor da ultra moderna cozinha molecular na qual pontua actualmente Ferran Adrià e, por todo o mundo muitos discípulos, entre os quais o nosso excelente Luís Baena, entre outros.
Nesse livro vem narrada uma pequena história que pode suscitar múltiplas reflexões sobre esta questão central: o conceito de valor.
Passo a transcrever, até porque é deliciosa:

“Um dia viajei com duas damas, acompanhando-as até Melun.
Não havíamos partido muito cedo, e chegámos a Montgeron com um apetite que ameaçava destruir tudo.
Vã ameaça: a estalagem onde parámos, embora de boa aparência, esgotara as provisões: três diligências e duas carruagens de correio tinham passado e, como os gafanhotos do Egipto, devorado tudo.
Isto foi o que disse o chef.
No entanto, vi a assar no fogo uma apetitosa perna de carneiro e à qual as senhoras, por hábito, lançavam olhares muito coquette.
Infelizmente, os seus olhares eram mal dirigidos. A perna de carneiro pertencia a três ingleses que a tinham trazido e esperavam sem impaciência que assasse enquanto bebiam champagne.
“Mas pelo menos”, disse eu num tom meio tristonho, meio suplicante, “o senhor podia misturar uns ovos com molho da carne desse carneiro. “Contentávamo-nos com esses ovos e uma chávena de café”. “Com certeza, não há problema” respondeu o chef , “o molho da carne é propriedade nossa por direito, e vou providenciar o que me pede”. E pôs-se logo a abrir os ovos com cuidado.
Quando o vi ocupado, aproximei-me do lume e, tirando do bolso uma faca de viagem, desferi na perna do carneiro proibido uma dúzia de profundos cortes, por onde o suco haveria de escoar até à última gota.
Tive então o cuidado de observar a cozedura dos ovos, para que nenhuma distracção nos viesse prejudicar. Quando estavam no ponto, peguei neles e levei-os para a mesa que nos haviam preparado.
E ali nos regalámos e rimos como loucos, pois na realidade devorámos o substancial da perna de carneiro, deixando aos nossos amigos ingleses apenas o trabalho de mastigar o resíduo.”


Savarin sabia onde estava o valor da perna de carneiro e roubo-o aos ingleses. A história não relata mas, provavelmente, os ingleses, depois de tanto champanhe nem se aperceberam que a perna já tinha perdido o seu valor.
Também nesta questão do bom e do mau existe um efeito de placebo.

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