2007-05-17

Malhas que o Império tece

Foi há 35 anos, em Angola.
Sentávamo-nos, o ex-soldado e eu, a uma mesa, conversando, entre petiscos e cerveja, sobre o dia passado e sobre a guerra que nos envolvia.
Nisto, diz-me ele com a voz mais baixa e um estranho à vontade, solene e triste:
- Sabes ? matei uma criança !
- Meu Deus, como pode ser isso, estás a brincar ? (como se se pudesse brincar assim)
Explicou-me então o que se tinha passado:
- Estávamos no meio de um tiroteio. Não se via nada, eu estava escondido atrás de umas moitas e disparava para o mato para de onde vinha o fogo inimigo.
De repente, passa um vulto negro a correr à minha frente, um filho da puta de um “turra” mesmo ali, à minha frente. Não pensei, não hesitei, dei-lhe um tiro e o vulto tombou ali.
Fui ver, era uma jovem negra que transportava um bébé, o seu filho, às costas.
Ela, jazia morta, a criança gritava assustada e em sofrimento, tinha um braço decepado pela bala.
Que fazer meu Deus ! sair dali e abandonar criança assim ?
Encostei-lhe a arma à cabeça e disparei sem olhar. Morreu instantaneamente.
Até hoje não sei se fiz bem ou mal, maldita guerra !
Nunca mais abordámos este assunto.
Apesar de trabalhármos hoje no mesmo ministério, há anos que não o vejo nem falo com o ex-soldado e, tudo se foi esmorecendo.
Até há dias em que me telefonou desesperado pedindo ajuda por conta de um processo disciplinar a que estava sujeito, conduzido por alguém que eu conhecia bem.
Intercedi por ele, falei ao meu amigo e disse-lhe que o ex-soldado era um bom rapaz, que já tinha trabalhado comigo, há anos em Angola e não tinha queixas dele, antes pelo contrário.
Não sei, nem quis saber o resultado final.
O meu amigo que instruiu o processo disciplinar apenas me disse:
- Vou ver o que posso fazer, mas não é fácil, o “gajo” é completamente maluco, passa de todas as marcas !
- Talvez ... !
Respondi-lhe eu, enquanto todo o pesadelo me afrontava de novo, voltando do fundo da memória.

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