2004-10-18

Isabel

Eu tinha então 24 anos, trabalhava em Angola, no Andulo, nos seus últimos meses de colónia, Isabel era uma nossa empregada doméstica com apenas 12 ou 13 anos.
Pagava-lhe uma miséria, ligeiramente superior à miséria habitual, dormia num colchão no chão contra a opinião de todos os casais amigos que criticavam a minha mulher por “esse luxo” que lhe proporcionávamos:
- Vai fazer xixi e estragar o colchão e, até dorme mal porque eles não estão habituados. Deve dormir numa esteira, aí é que ela se há de sentir bem.
Nunca demos ouvidos a essas críticas, sempre pensei que as costas humanas não conhecem escravo nem amo.
Aliás, Isabel não se queixava, vivia feliz, cantarolava, ria-se muito quando eu, no meu umbundo mal arranhado, lhe dizia de brincadeira: Isabel, “nena vava”, querendo dizer “traz-me água” mas certamente tão mal dito que lhe despertava sempre um riso sincero ou seria do prazer que lhe dava a ida à fonte ?
A ida diária para buscar água de uma determinada fonte era o seu grande momento de prazer e liberdade, aí se encontrava com as amigas, conversava sobre o dia, brincava e levava sempre muito mais tempo do que o razoavelmente necessário.
Nós sempre lhe tolerámos esse “abuso” porque a fazia feliz e não nos prejudicava, nem um pouco, já que todo o trabalho era feito a tempo e horas mas, mais uma vez a minha mulher foi muito criticada, Isabel perturbava a paz social: as suas amigas, empregadas de outros casais, usavam a liberdade de Isabel para apoiar as suas reivindicações e muitas vezes também se demoravam desculpando-se com Isabel.
Depois veio o 25 de Abril, a minha difícil decisão de regressar a Portugal, grandes períodos de ausência do Andulo para a então Nova Lisboa e Luanda na preparação da nossa partida e, quando regressávamos, dias depois, Isabel lá aparecia sempre para nos encontrar e retomar o serviço.
Contaram-nos que diariamente Isabel esperava sentada no chão da rua aguardando ansiosa qualquer janela aberta ou luz acesa que lhe indicasse o nosso regresso.
Decidimos voltar a Portugal e despedimo-nos de Isabel definitivamente, nunca mais a voltámos a ver. Apesar de tudo tivemos, alguns dias depois, notícias do Andulo dizendo-nos que Isabel continuava a ficar na rua, em frente da nossa casa, à espera do nosso impossível regresso.
Desde esse tempo que me lembro, muitas vezes, de Isabel, especulo sobre o que terá sido a sua vida ou a sua provável prematura morte, dado os anos brutais e selvagens que se seguiram em Angola.
Lembro-me e invade-me sempre uma estranha sensação de vazio, de incompletude, de que o meu efémero e aparentemente insignificante contacto com Isabel não pode ter terminado ainda.
Foi a minha primeira experiência de patrão, quando eu era ainda um miúdo pouco maior do que ela e o episódio Isabel na minha vida foi determinante na minha formação e visão do Mundo.
Não me conformo que tenha sido tão breve, penso que se olhar para o Sul, e pensar com muita força “nena vava”, terei que ver um dia, de novo, Isabel voltando da fonte, rindo e contente, carregando a sua vasilha de água fresca.

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