2009-11-25

Carta a meus filhos

Subscrevo inteiramente a “carta a meus filhos, sobre os fuzilamentos de Goya” que Jorge de Sena escreveu há anos.
Como eu não saberia dizê-lo melhor, deixo aqui o texto original que dedico aos meus filhos e aos meus netos.



Goya: Los fusilamientos de la montaña del Príncipe Pío

CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, e foram sacrificados, torturados, espancados, e entregues hipocritamente â secular justiça, para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras por serem de uma classe, expiaram todos os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência de haver cometido.
Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor.
Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve, nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis) de ferro e de suor e sangue e algum sémen a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de té-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença, ardentemente espero.
Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - não hão-de ser em vão.
Confesso que multas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável. Serão ou não em vão?
Mas, mesmo que o não sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam «amanhã».
E por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram.

2009-11-24

Desentendimento

Ontem assisti, no programa “Prós e Contras”na RTP1 ao “debate” sobre a justiça.
Aspei (neologismo) o debate porque na realidade não vi nenhum debate.
Não vi o confronto de ideias, não vi o desacordo que esperava ver num debate, apenas vi desentendimento, foi como todos dissessem uma só coisa em línguas diferentes.
Tornou-se mais claro para mim o pensamento de Jacques Ranciere: “Desentendimento: Política e Filosofia”.
Nessa linha do desentendimento, procurei as minhas reflexões, já de 2006, sobre a corrupção e observei, com gosto, que ainda estavam actuais, tinham ficado também bem naquele debate.
Aqui fica a primeira.
A segunda
A terceira.
Também uma conclusão, a propósito do livro de “Paulo Morgado”

2009-11-18

Portugal

Conseguiu hoje o apuramento para a fase final do Campeonato do Mundo de futebol de 2010.
Agora, só falta fazer o resto.

2009-11-12

Como é difícil gerir um mundo destes

Geisy Arruda, foi expulsa da Universidade Bandeirantes em S. Paulo por usar uma mini-saia mais pequena do que qualquer norma obscura permite.
A perturbação que causou na Universidade foi classificada pela RTP1 como fruto da barbárie, ignorante.
As minhas perguntas?
Se a jovem Geisy se tivesse apresentado nua, será que a reacção, que certamente haveria, seria ainda assim considerada de barbárie, ignorante?
Uma comunicação social que acha inadmissível que um Ministro faça “corninhos” com os dedos e ainda inadmissível e ridículo quando alguma instituição determina regras de conduta e vestuário, tolerará o quê? Mini-saia sim, corninhos não, nudez, não sei.
É difícil viver num mundo destes.

2009-11-10

A questão dos crucifixos nas escolas

Ou o poder dos símbolos

Como já saberão, um casal ou talvez a mulher desse casal italiano, de nome Soile Lautsi e de origem finlandesa, numa, epopeia notável de combatividade, conseguiu uma decisão da Corte Europeia dos Direitos Humanos para a retirada de um crucifixo de uma escola em Padova (Itália) onde estuda uma filha desse casal.
O crucifixo incomodava-a.

Este episódio mediático traz-nos muitos pontos de reflexão.
Em primeiro lugar admiro o esforço e a luta daquela mulher para fazer vergar a autoridade da escola, que perante o seu manifesto incómodo, a tratou com sobranceria e desprezo e se recusou a conformar com o seu pedido. A força de um indivíduo contra um mundo hostil.
Em segundo lugar admiro a escola que não cedeu a uma, para ela esquisitice, de uma mãe que se incomodava com algo que não incomodava mais ninguém. A coerência de quem acredita no sistema.
Em terceiro lugar irrita-me aquela mãe tão insegura das suas convicções e da sua capacidade de educadora que pensa que um simples crucifixo afixado na parede irá corromper e estragar toda a educação que pretende para a sua filha, atribuindo assim uma capacidade sagrada ao crucifixo ainda mais forte do que a atribuída pela própria Igreja Católica. Contradizendo-se e mostrando-se assim tão frágil no seu ateísmo militante.
Em quarto lugar irrita-me aquela escola que não teve capacidade de gerir uma questão bem simples e de tratar assim à bruta a sensibilidade de uma mulher. A prepotência da autoridade surda cega e cobarde.

A realidade é que tratamos com símbolos e ninguém domina a força psíquica que os símbolos trazem e que magicamente afectam alguns ao ponto de serem capazes de morrer por eles e deixam completamente indiferentes outros.

Este episódio faz-me estabelecer uma relação com um outro, passado com o meu neto Luís e relatado no “blog” da minha filha Joana e que reproduzo parcialmente aqui:

”Ao comer sopa de letras começa a gritar "Xis não, xis não". E eu, porque só quero paz e sossego, trato de tirar xizes para a borda do prato. No fim enche a colher: "Agora todos!" Engole uma colherada de Xxxxx e a cozinha fica finalmente em silêncio.”

Para o Luís, aos 3 anos, os xis já parecem ter uma força simbólica.
E até é uma letra curiosa é também uma cruz, a cruz de Sto. André.

A minha conclusão, vou buscá-la a Shakespear.

“Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a tua vã filosofia”

Citando de cor o que me lembro de ter lido no Hamlet de Shakespear.

2009-11-09

A Ciência espectáculo

Há pouco, no telejornal da RTP1, reportaram um estudo, Norte-americano, que demonstrava que as filhas envelhecem como as mães!?
A utilização da notação: !?, usada no jogo do xadrez para notar uma jogada simultaneamente admirável e insólita ou estranha foi a que encontrei para caracterizar este facto.
Altos investigadores de uma universidade americana descobrem algo que toda a gente já sabia, há milhares de anos, consagrado na expressão “Tal pai tal filho”.
De facto o mecanismo genético já era pressentido pelos humanos, ainda que não fizessem ideia de como funcionava, muito antes do abade Mendel começar com as suas experiências, controladas, com as ervilhas de cheiro.
O meu espanto (!) veio daí e a minha estranheza (?) veio de antever que algo mais importante estaria por trás.
E de facto parece que estava mas só me chegou implícito.
Segundo o investigador que tentou explicar o estudo, a questão em causa foi analisar a importância relativa dos factores genéticos face aos factores adquiridos e, entre eles, foi focado o uso de barbitúricos, de fumar, dos maus hábitos, em suma.
Para espanto dos investigadores que, certamente entre outros casos, analisaram Judy Garland, que parece ter sido um poço de vícios, com a sua filha Lisa Minelli, que também parece não estar isenta de pecados embora diferentes, o resultado não apresentou diferenças significativas, Judy e Lisa ganharam as mesmas rugas nos mesmos sítios e nas mesmas idades.
Depois, aperceberam-se de quão politicamente incorrecto era dizer isto:
Faça a vida que fizer, beba drogue-se, deboche que o resultado vai ser, mais ou menos, o mesmo, vai envelhecer tal qual como a sua mãe.
Não podendo dizer isto, o que dizem então? o que todos já sabíamos: tal mãe, tal filha.

2009-11-06

Factos na ordem do dia

Como espectador medianamente interessado no espectáculo político nacional, fui olhando o debate sobre o programa do novo e, no entanto, velho Governo.
Hoje constatei, com espanto, o resultado:
O Programa passou embora sem votação.
Pergunto eu: Se não se votou como é que se sabe que foi aprovado?
Mas o facto não parece ter incomodado ninguém, pelo menos ninguém se deu ao trabalho de me explicar. Deve ser óbvio.
Passou sorrateiro perante as críticas da oposição que, todavia, não lhe fizeram mossa nenhuma, foi uma brincadeira.
Eu passei a conhecer essa, para mim, nova figura parlamentar: não se vota e aprova-se por omissão.
Por vezes é cómodo, sem dúvida.

Paulo Bento lá se decidiu a sair do Sporting, e assim não foi preciso meter na rua todos os jogadores.
Até reconheceu que já devia ter saído há 4 meses.Também me parece.

2009-11-02

O Sporting

Só tem duas hipóteses:
Ou substitui o treinador Paulo Bento
Ou deixa ficar o Paulo Bento e substitui todos os jogadores.
Assim está mais que provado que não dá.

2009-11-01

A noção de crime

Hoje, quase por acaso tropecei neste texto de Daniel Quinn, que traduzi para aqui e que acrescenta alguma luz à reflexão que procurei estimular no poste anterior:

Se alguém te irrita, por exemplo por te interromper constantemente quando falas – isto não é crime. Não podes chamar a polícia e fazer com que essa pessoa seja detida, julgada e presa, porque interromper pessoas não é crime. Quer isto dizer que tens de resolver a situação sozinho, como puderes. Mas se essa mesma pessoa entrar na tua propriedade e se recusar a sair, isto é “invasão de propriedade”, um crime, e podes, sem dúvida chamar a polícia e fazer com que essa pessoa seja presa. Por outras palavras, o crime mobiliza a máquina do Estado, enquanto outros comportamentos indesejáveis não. Crime é o que o Estado define como crime. Invadir a propriedade é crime, interromper não é crime e, portanto, temos duas opções inteiramente diferentes de lidar com a situação – que as pessoas nas sociedades tribais não têm. Seja qual for o problema, seja má educação ou assassínio, eles lidam com o problema da mesma maneira que tu lidas com o interruptor de conversas. Invocar o poder do Estado não é uma alternativa para eles, Porque não têm Estado. Nas sociedades tribais o crime, simplesmente não existe como uma categoria específica de comportamentos humanos.