2009-02-25

A importância de um Hã

Ainda me doem as mãos de algumas palmatoadas que apanhei há cerca de 51 anos por ter questionado a minha professora primária, sobre algo que não tinha compreendido bem com um “hâ?”, em vez de uns civilizados “o quê?” ou “como?”.
Desta história retira-se que naquele tempo era legítimo aos professores primários aplicar castigos corporais aos seus alunos, bem longe deste tempo em que são mais os alunos a usar estes métodos com os professores.
Mas isto é irrelevante para o que pretendo dizer.
O que me magoou, até agora, nessas palmatoadas é que logo as avaliei como muito injustas.
O meu “hã” foi espontâneo, sem qualquer maldade e nos meus 8 anos eu ainda não dominava perfeitamente estes cambiantes da língua.
Mas ao ler o texto que se segue pude aperceber-me claramente como um “hã?” pode ferir como um punhal.
É um texto brilhante de Raul Brandão, um mestre da língua portuguesa, e que demonstra claramente como algumas poucas palavras podem dizer muito mais do que 1000 imagens:


“Tinha morrido na véspera. Nas últimas horas do dia nublado, ao sentir-se trespassada pelo frio, o da morte, chamara para junto de si a irmã, a Candidinha, uma mulher insignificante, envolta num xale gasto. Pelos vidros côa-se a luz baça do crepúsculo. Fora choram. A velha traça o xale, e a boca aumenta-lhe, avivam-se-lhe as rugas.
- A minha filha, peço-te… - diz-lhe a outra.
E entrega-lhe um maço de cartas.
A velha não responde. Um silêncio glacial. Na luz, que atravessa, antes de entrar no quarto, a espessura da água esverdeada, a Candidinha esboça um gesto de garra que se contrai. E a moribunda repete:
- Olha por ela… Tu sabes tudo.
A velha hesita; depois vai de súbito à porta e fecha-a de repelão. Transfigura-se: dum jacto sai daquela mulher amachucada e insignificante, uma figura de aço e ódio. Curva-se sobre a irmã e fala-lhe baixinho ao ouvido.
- Hã? …”

Raul Brandão in “A Farça”

2009-02-20

Falemos de café

Como português o café é fundamental para mim.
Como Agrónomo, fitiatra, o meu primeiro emprego foi no Instituto do Café de Angola (então ainda colónia), estudando métodos de combate a uma praga do cafeeiro: a broca do fruto.
Aprendi aí alguma coisa sobre esta bebida: história, lendas, mitos, verdades científicas, e, fundamentalmente, aprendi várias formas de a consumir.
Aprendi as diferenças entre as duas espécies dominantes, o café “arábica” e o “robusta”, desde a planta até à chávena, as diferenças entre elas e algumas implicações dos loteamentos e da forma das múltiplas transformações até ao produto final, o café bebível.
Como português, porém, a minha predilecção recai na “bica”, o café dominante em Portugal e quase único no mundo, embora comecem a aparecer vagamente aproximações com o nome genérico de “expresso”.
Mas a bica, a verdadeira bica é uma ciência e, como questionava um atónito estrangeiro “como é que numa chávena tão pequena os portugueses ainda estabelecem diferenças quanto à forma de a encher?” De facto há quem a queira pouco cheia, a “italiana”, a meio, “o curto”, a dois terços, “o normal” ou totalmente cheia, “a bica cheia”, e há ainda uma bica normal em chávena maior, “o abatanado” e refilam e trocam o pedido se este não respeitar estes detalhes. Depois há ainda outras variantes, como a bica com um pingo de leite, “o pingado”, com mais leite, “o garoto” ou com um pouco de água, “o carioca”.
Quanto ao café em si, uma boa bica tem que ter uma cobertura de creme espesso, castanha e sem bolhas, a bica ideal tem que passar o que eu chamo “o teste do açúcar” ou seja o açúcar adicionado deve permanecer cerca de um segundo incólume sobre a cobertura antes de mergulhar na chávena mas, ao mexê-lo, deve-se ver a cor preta do café começando a dominar a espuma superior e, depois de um primeiro gole, a espuma só é tolerada como uma leve coroa junto à borda da chávena.
É neste comportamento que se diferencia a bica de um vulgar expresso.
O “nespresso”, por exemplo, que tenho andado a estudar, passa sempre o teste do açúcar, mas não se liberta da espuma. Em grande parte dos 16 tipos de café da “nespesso” a cor preta do café nem se chega a ver. Assim não vale, assim não é uma bica.
Um Professor americano com quem convivi uns dias em Portugal, ficou impressionadíssimo com a nossa bica e fez uma análise apressada, interpretou que isso se devia ao café ser muito forte. Quando por sua vez recebeu um grupo de portugueses, entre os quais eu, nos EUA, deu instruções na Universidade para que o café que nos servissem fosse incrivelmente forte, quase intragável, e confidenciou-me “Eu mandei fazer assim forte para imitar o vosso café, mas na verdade não me diga que assim é melhor” “não é melhor não” respondi-lhe eu, “é que a diferença não está na quantidade de café”, mas depressa desisti de lhe tentar explicar o que era uma bica.
Mas o café não é apenas a bica, nem só nesta forma nos pode dar um prazer intenso.
Na Polónia, nas áreas de apoio das auto-estradas, em 2003, pelo menos, só serviam o café turco, em copo grande.
Com um frio de rachar lá fora, era para mim um intenso prazer segurar no copo durante vários minutos, esperando que o pó sedimentasse, aquecendo confortavelmente as mãos e divagando sobre o meu quotidiano, depois ingeria o café bem quente e saboroso. Era uma maravilha reconfortante.
O café turco, naquele contexto, quase conseguia superar a “bica”.

2009-02-17

Bom vinho

A propósito da demissão do Ministro das Finanças japonês, por ter participado “bêbado”, alegadamente devido ao álcool mas segundo o Ex-Ministro, devido a medicamentos que tomava associados a um pouco de álcool, de qualquer modo inegavelemente “bêbado”, numa conferência de imprensa; a TVI decidiu recordar-nos cenas públicas de grandes estadistas, onde estes apareceram igualmente “Bêbados”.
Citaram Churcill, que tem essa fama mas para o qual não há registos e mostraram Bill Clinton, Boris Ieltsen, George Bush e Sarcosi.
Uma coisa é certa, todos mostraram ter “bom vinho”, o que é uma grande virtude num ser humano.
Este é um excelente termo da sabedoria popular portuguesa que classifica uma boa reacção que muitos humanos têm ao álcool, alegria, boa disposição, humanidade e solidariedade, em oposição ao “mau vinho” que alguns demonstram também e que se caracteriza por agressividade, insolência, tristeza e má disposição.
Ao ver estas cenas, e vendo o “bom vinho” daqueles estadistas questionei-me se o mundo não poderia ser bem melhor se aquele fosse o seu estado permanente!
Eu penso sinceramente que sim.

2009-02-16

Nação, Povo e Pátria

Há poucos meses assisti a uma conferência na livraria Bulhosa de Campo de Ourique onde se abordava o tema “nação”.
Foi bem interessante e intelectualmente estimulante, como sempre que procuramos dominar a imensa complexidade de todas as coisas simples.
A noção de nação, por exemplo, não nos trás geralmente muitas dificuldades, identifica-se com um estado, organizado num determinado território, e não teremos dúvida em considerar a Suiça ou a Espanha como nações embora, mesmo assim, já me pareça duvidoso que o Estado Palestiniano ou mesmo o Kosovo possam ser classificados como tal.
Depois há as noções afins de povo e pátria, bem mais complexas ainda.
Povo, poderemos tentar defini-lo como uma comunidade linguística e cultural geralmente também ligado a um território, todavia, se bem que eu reconheça o povo português, o povo brasileiro, o povo francês, inglês, alemão e japonês como povos que se encaixam naquela definição, já não reconheço um povo suíço, um povo espanhol, identificado com o seu território, e, por outro lado reconheço os povos cigano e judeu como povos independentes de nações.
A noção de Pátria então é ainda mais complexo e indefinível, como Pessoa disse “a minha pátria é a língua portuguesa”, para mim a minha pátria transcende Portugal, inclui o Brasil, Angola, Moçambique e todos os países da CPLP.
Nação, povo e pátria parecem-me questões bem polémicas e complexas mas muito interessantes também, penso eu.

2009-02-12

A Eutanásia

No que se tem debatido, nestes dias sobre este tema, que me parece simplicíssimo, não consigo perceber a posição da Igreja Católica.
Então não é central à sua doutrina que Jesus Cristo cometeu uma eutanásia par nos salvar?
Custa ver tanto apego à vida terrena a quem promete a vida eterna depois da morte.

2009-02-10

Matt Harding

Este famoso vídeo tem corrido o mundo via e-mail e já o vi mesmo na tv.
É geralmente encarado como um vídeo curioso, insólito, engraçado e meio maluco.
Para mim é algo muito mais sério.
É um “statement”, uma espantosa obra de arte performativa, sempre que o vejo fico comovido e desperta-me o sentimento de como tudo, de facto poderia ser bem mais simples.
Dançar em vez de sofrer, usufruir em vez de destruir, sentir como em qualquer ponto do mundo, em todas as culturas, por mais exóticas que nos pareçam, sob todas as diferenças podemos ver sempre a mesma humanidade.
Tenho uma grande admiração pelos talentos que o conceberam.


2009-02-09

Tempo a mais e espaço a menos

O meu escritório está atulhado, um pequeno livro tem que lutar com outros para se conseguir aconchegar e, para mais, várias prateleiras estão a abarrotar de vestígios de uma tecnologia moribunda, cassetes de vídeo.
Ainda me lembro bem quando essa tecnologia apareceu com toda a força revolucionária, lembro-me do combate entre os sistemas Beta e VHS, que este último venceu, foi tudo ainda ontem, hoje, porem, parece que foi há séculos de tão velha que ela está.
Entretanto, enquanto deu, fui acumulando filmes e outras gravações que me enchem prateleiras de cassetes, que já nem sei bem o que contêm, mas que me custa destruir assim, sem mais nem menos.
Como o que falta em espaço me sobra em tempo, comecei a dedicar-me a ver uma por uma e passar para DVD tudo o que quiser conservar.
É uma tarefa, apenas começada e quase infindável mas também tem as suas compensações.
Logo na primeira que vi encontro uma espantosa versão do Hamlet, gravada não sei quando da BBC prime, é o melhor Hamlet que alguma vez vi e já o passei a DVD. Logo a seguir encontro, após um excelente filme que, todavia já tenho em DVD, o velho Rollerball de que já falei aqui, encontro duas das velhinhas pequenas histórias televisivas produzidas por Alfred Hitchcock, lembram-se?
Enfim, o que antevia ser uma estucha de tarefa está-me afinal a proporcionar horas de prazer.
Vamos ver o que o futuro revelará.

2009-02-08

Segredo de justiça

Começo a aperceber-me que o tão falado segredo de justiça não visa proteger as investigações que se vão fazendo.
A verdadeira razão parece ser a de esconder as investigações que se não fazem.

2009-02-06

O Outlet da discórdia - Acto V

ACTO V

Numa praça pública em Portugal. De início está presente o coro e vão entrando Smitendpedro, tio, josesito, Inglês, procurador, D. Massmedia, e um mendigo que é Franco Carlutchi.

O Coro começa a cantar ao som da conhecida música infantil.

Coro
Josesito já te tenho dito que não é bonito andares-me a enganar
Chora agora Josesito chora, que me vou embora para não mais voltar.

No seu canto remoendo as palavras.

Franco Carlutchi
Que me vou embora? Não, Que te vais embora.
Josesito
Mas que coro é este? Que mal fiz eu? Porque me tratam assim?
Inglês
Pois não é óbvio? Será que o senhor não recebeu milhões ou permitiu que alguém recebesse para aprovar o Outlet em tempo record, como foi feito?
Josesito
Eu não, isso são os meus inimigos ocultos que querem fazer crer
Procurador
De facto, nada está provado. Vamos continuar a averiguar
Josesito
Estão a ver, que isto é tudo inventado, não ouviram o Sr. Procurador
D. Massmedia
O que se sabe é que isto cheira muito mal. Há os milhões que o Smitendpedro pediu, há os despachos feitos a correr e em gestão, há o Inglês que sabe tudo.
Procurador
O Inglês sabe tudo, o tanas, nós é que estamos a investigar.
Tio
Tanto barulho para quê? Afinal eu é que facilitei tudo e nem obrigado me disseram.
Smitendpedro
Não facilitou nada, nós é que fomos os agentes

Depois, baixo para o Inglês.

Smitendpedro
Como sabem Portugal é um PIGS, o dinheiro foi para o Ministro e para muito mais gente.
Inglês
A gente bem sabe. Estes merdas nem a pequena Madie conseguiram encontrar.
D. Massmedia
O Sr. Inglês também tem a mania que é esperto mas também se espalha muito.
Inglês
Eu sou Inglês, ouviu?

O Coro recomeça a sua cantiga mas em tom mais baixo:

Coro
Josesito já te tenho dito que não é bonito andares-me a enganar
Chora agora Josesito chora, que me vou embora para não mais voltar.
Josesito
Deixem, mas é, a justiça trabalhar
Procurador
Nós vamos continuar a trabalhar
Smitendpedro
Eu, por mim não tenho mais nada a dizer
D.Massmedia
Eu estou em cima, não deixo passar nada mas que isto cheira mal, cheira.

Todos se começam a afastar, excepto o mendigo Franco Carlutchi que a tudo assistiu com um sorriso irónico, se volta para a plateia e diz o seguinte solilóquio.

Franco Carlutchi
Portugal, Portugal, tu nem sabes quem te governa.
Se não fosse eu, quem, há 35 anos, te livrava das garras do monstro comunista?
E agora, quem, se não eu, te pode livrar do ambicioso, independente Josesito?
A Ferreira Leite? Ah Ah Ah.
Portugal, não saias da linha, deixa o meu veneno prosperar.
Para ti fica o espectáculo.
Para mim, a vitória.

O pano desce

FIM

2009-02-05

O Outelet da discórdia - Acto IV

ACTO IV

Cena I

No Escritório de Smitendpedro, este conversa com a Secretária

Smitendpedro
D. Secretária, Já há novidades do outlet?
Secretária
Telefonaram hoje a dizer que a licença está quase no papo, só falta uma porcaria qualquer que se vai ultrapassar rápido
Smitendpedro
A Senhora, já sabe, quando chegar o Sr. Friporte tem que estar caladinha
Nada de lhe dizer que o assunto já está quase resolvido, ouviu?
Secretária
Eu sei Sr. Smitendpedro.
Eu não sei nada de nada e também não quero perder o meu emprego
Smitendpedro
È que se ele pressentir que já está tudo resolvido, é bem capaz de me roer a corda.
Sabe como são estes capitalistas.
Secretária
Comigo pode estar descansado, sou surda e muda.

Cena II

Tocam à porta, a Secretária abre e entra Friporte

Smitendpedro
Ora seja bem-vindo a este pobre escritório Sr. Friporte.
Friporte
Bom dia meus senhores, vamos ao que interessa.
Como é que vai o licenciamento do “outlet”?
Smitendpedro
Mal, Sr. Friporte, este país é terrível, é um “PIGS”, só anda à custa de dinheiro. Ele é papelada, ele é motivar funcionários, ele é uma carga de trabalhos e fora as minhas despesas que são imensas.
Friporte
Adiante, adiante, o Senhor prometeu-me rapidez.
Afinal quanto é que precisa?
Smitendpedro
Uns 6 milhões, talvez já dê.
Friporte
6 milhões? Você está maluco? Para quê tanto dinheiro?
Smitendpedro
Sr. Friporte, isto tem Ministros e altos funcionários envolvidos, não julgue que eles vão lá por pouco.
O país é do terceiro mundo, mas as elites também gostam de viver bem.
Friporte
Bem? É mas é muito bem. Assim se calhar nem o investimento vale a pena.
Smitendpedro
Ora, ora Sr. Friporte aquilo vai ser um maná, em Alcochete, zona lindíssima e ainda por cima já se fala num novo aeroporto para lá.
Friporte
Bom, você leva-me à ruína mas está bem, para que não hajam desculpas.

Afasta-se e preenche um cheque

Friporte
Tome lá, e ande com isso depressa e não há mais, ouviu.
Smitendpedro
Muito obrigado Sr. Friporte, agora há condições para ficar tudo resolvido.

Cumprimentam-se e Friporte sai.

Cena III

Ficam Smitendpedro e a Secretária

Smitendpedro
D. Secretária, parece que nos safámos. O cheque já está aqui na mão.
Secretária
Eu guardo-o no cofre, é muito dinheiro.
Smitendpedro
É melhor, para já, mas comece já a tratar para o depositar nas Ilhas Caimão, na minha conta, ouviu?
Sabe como fazê-lo?
Secretária
Oh Sr. Smitendpedro, então não havia de saber?
Não tenho feito outra coisa desde que trabalho consigo.
Smitendpedro
Está bem mas agora é muito dinheiro, tem que fazê-lo rápido e nem uma palavra a ninguém.
Secretária
Não se preocupe Sr. Smitendpedro, amanhã já lá vai estar e, como sabe, eu aqui sou sempre surda e muda.

Cena IV

Passados uns meses na casa de Tio que voltando-se para a plateia, profere o seguinte solilóquio.

Tio
Como no teatro, o actor só brilha porque outros, no escuro e no silêncio manipulam milhares de cabos que comandam cenários e cortinas, orientam os holofotes para o centro da acção, que sem esses holofotes não seriam mais do que mais um recanto escuro.
Mas é assim o mundo injusto, onde uns se esforçam e permitem tudo, outros por engenho ou um acaso da sorte tomam para si esse sucesso e é sobre esses que recaiem as benesses.
Quem, se não eu, abriu as portas do poder a Smitenpedro?
Quem, se não eu, permitiu que o capital se implantasse em Alcochete?
Todavia dos 4 milhões que diziam que tinham, nem um tostão me chegou!
Já é ter azar!

Senta-se pesaroso e o pano desce

2009-02-04

O Outlet da discórdia - Acto III

ActoIII

Cena I

No seu gabinete, Josesito conversa com o Operativo

Josesito
Já viste isto, diz-me o meu tio que estão a pedir imenso dinheiro para licenciar o Outlet do Friporte.
Operativo
É natural, há sempre gente a aproveitar-se.
Josesito
É estes ingleses que acham que nós somos todos corruptos, puta que os pariu.
Operativo
Todos, não seremos mas há bastantes.
Josesito
Para lhes calar a boca o melhor é despachar isso depressa.
Operativo
Agora não dá estamos só em gestão.
Josesito
Não dá o quê? O Ministro sou eu carago, trata-me disso rapidamente ouviste.
Operativo
Ok chefe, vou já falar com o Secretário de Estado e os outros.

Cena II

Na rua, junto ao ministério um mendigo que é de facto Franco Carlutchi, rumina para a plateia

Franco Carlutchi
Chegou a minha vez, a teia está urdida.
Primeiro apodero-me de Friporte, Eu ?, claro que não, sou apenas um mendigo (ri: ih, ih) mas o Carlaile que não é outro senão eu.
É só comprar o outlet e soltar o meu veneno, mordendo um e outro, suave nuns casos violento noutros até que a infecção alastre.
Ah Iago, aprende comigo!

O pano desce.

(continua)

2009-02-03

O Outlet da discórdia - Acto II

Acto II

Cena I

Num bar na Quinta do Lago no Algarve, a uma mesa bebem e conversam Smitendpedro e Tio

Smitendpedro
Pois é caro Tio, que país este! Imagine que me andam a pedir 4 milhões para conseguir o licenciamento de um “outlet” em Alcochete.
Tio
4 milhões? Mas isso é uma barbaridade, Quem é que pede isso?
Smitendpedro
Um escritório de advogados, imagine.
Tio
Que pouca-vergonha, ainda que fosse para alguém que os mereça, mesmo assim é muito, deixe estar que eu já falo ao Josesito.
Smitendpedro
O Josesito, Ministro?
Tio
Sim, o filho da minha irmã, sou tu cá tu lá, com ele.
Smitendpedro
Isso é que é ouro sobre azul, quando é que pode falar?
Tio
Já agora, espere um momento.

Cena II

Tio afasta-se um pouco e liga o telemóvel para Josesito

Tio
Está, és tu Josesito? Eu estou aqui com o amigo Smitendpedro que me está a dizer que há um gabinete de advogados ou lá o qu é que está a pedir 4 milhões para licenciar um “outlet” em Alcochete, será possível?
Josesito
Não pode ser, que história mal contada, mas que Outlet é esse?
Tio
Não sei bem parece que é de um tal Friporte.
Josesito
Ah, ele que fale comigo para me explicar isso, que marque com a Secretária.
Tio
Vou-lhe dizer, porque de facto assim não pode ser, obrigado.

Cena III

Deligando o telemóvel e voltando à mesa com Smitendpedro

Tio
Ele também acha que não pode ser, 4 milhões é muito, o melhor é falares com ele, pede uma audiência à Secretária.
Smitendpedro
Está bem pá, vou tratar já disso, obrigadíssimo.

Continuam a conversar em voz mais baixa e o pano desc

(continua)

2009-02-02

O Outlet da discórdia- Acto I

O Outlet da discórdia

Tragicomédia em 5 actos
Obra de imaginação de
Pentalomino de Arifante.

Dramatis Personae

Friporte, senhor do capital.
Longavista, assessor de Friporte
Smitendpedro, aventureiro de origem inglesa mas radicado há muitos anos em Portugal, de facto meio português
Tio, aventureiro português, bem relacionado, amigo de Smitendpedro e de Josesito
Josesito, nobre da corte portuguesa, ambicioso e talentoso, Ministro do governo no início da peça e Presidente do Governo no seu final.
Operativo, assessor de Josesito
Secretária, funcionária operativa de Smitendpedro
Inglês, figura sinistra embuçada, é uma autoridade britânica, nebulosa e poderosa.
Procurador, autoridade portuguesa.
D. Massmedia, Senhora da imprensa, amiga de todos e inimiga dos mesmos todos.
Coro, encarnação fantástica do pensamento comum do povo português.
Franco Carlutchi, figura sinistra, eminência parda, aparece apenas sob a forma de mendigo.

Acto I
Cena I

Sala de um “business center” em Londres

Entram Friporte e Longavista

Friporte
Estou farto desta apatia, tenho que ampliar os meus negócios.
Longavista
Sr. Friporte, como eu já lhe tenho dito, o senhor devia investir em Portugal, tem aí imensas oportunidades.
Friporte
Num “PIGS”, tenha juízo, ia-me meter em muitos sarilhos, nem pensar nisso.
Longavista
Sr. Friporte, em Portugal é trigo limpo, eu conheço quem o pode ajudar, fazia-se lá um “outlet” em Alcochete que é uma zona muito bonita, junto ao Tejo e tem um grande potencial de crescimento.
Friporte
Junto ao Tejo? Deve ser área protegida, não é para lá que voam os alfaiates do Wash”?
Longavista
É, e tem lá outras aves protegidas, mas eles não ligam nenhuma, é muito fácil.
Friporte
Mas têm muita burocracia, para arranjar uma licença é o cabo dos trabalhos.
Longavista
Aí é que entra o meu amigo Smitendpedro, ele conhece aquilo muito bem, sabe mexer todos os cordelinhos.
Friporte
Se assim é, vamos falar com esse homem o Smitendpedro e logo se vê.

Cena II
Na mesma sala, entram Longavista e Smitendpedro.

Longavista
Caro amigo, o Sr.Friporte já aí vem e tudo se vai arranjar.
Smitendpedro
Mas o homem tem mesmo dinheiro? É que isto não vai ser barato.
Longavista
É riquíssimo e quer investir, só o que não domina é Portugal e é mesmo para isso que o meu amigo está aqui.
Smitendpedro
Vamos a ver, é que isto não vai sair nada barato.

Entra Friporte

Friporte
Bom dia meus senhores.
Longavista
Bom dia, este é o meu amigo Smitendpedro de que lhe falei e já está a par da situação, é só preciso ver os detalhes.
Friporte
Muito prazer, Sr. Smitendpedro, o Longavista tem me falado de si e diz-me que o Senhor, em Portugal, se mexe muito bem.
Smitendpedro
Muito prazer Sr. Friporte, Longavista não o enganou, eu já sou meio português e trato por tu aquela gente toda, só que vai ser preciso muito dinheiro, sabe, como é num “PIGS”.
Friporte
Dinheiro não há-de ser problema, tem é que me garantir que sai tudo certinho, a papelada toda correcta, tudo na lei, não quero problemas
Smitendpedro
Oh Sr. Friporte, dessa parte sei eu bem, é só uma questão de dinheiro. Haja dinheiro que todas as portas se abrem.
Friporte
Assim seja, pode começar a tratar de tudo mas seja rápido que eu não tenho
tempo a perder.
Smitendpedro
Rapidíssimo, vai ver.

Enquanto os outros se afastam, Friporte volta-se para a plateia profere o seguinte solilóquio.

Friporte
Voa, voa Capital que o teu lugar é o mundo.
Tu és como o Sol que dá calor e brilho a todos que o merecem e seca as ervas daninhas e destruí os párias e os inúteis que nem deveriam ter nascido.
Eu te adoro Capital, e apoio a tua luta.
Contra o teu poder não há canto de ave que se ouça, não há pantanal pútrido que ouse desafiar-te.
Tu és a ordem e o progresso, nem imperadores têm poder sobre ti, porque o teu braço é mais forte e a todos derruba.
Com o teu sucesso eu alcançarei a minha felicidade

Saem todos conversando alegremente e o pano desce

Notas do autor:
1. Alfaiates são espécies avícolas que partilham o seu habitat entre o rio Wash, no Reino Unido, e o rio Tejo, em Portugal.
2. PIGS é um acrónimo que designa, para alguns meios da finança, política e comunicação do Reino Unido, os 4 países do Sul da Europa, com pior fama: Portugal, Itália, Grécia e Espanha .
(continua)